segunda-feira, 16 de junho de 2014

A Faixa

Abbey Road, Londres
Parece comum. Em alguns lugares talvez sempre tenha sido. Mas quem viveu durante anos em lugares onde a ditadura dos carros predominava, se surpreendeu na primeira vez em que viu um carro parar para um pedestre atravessar.

Foi assim comigo, durante anos vi a faixa de pedestre como algo irreal, como as fadas dos contos de fadas. Quando comecei dirigir, e no lugar em que comecei a dirigir, elas nem existiam. Em outros lugares as vezes encontrava uma ou outra perdida, mas não via ninguém parar. Eu tinha receio de parar e o carro que viesse atrás de mim batesse no meu carro e o meu carro atropelasse o pedestre. Então esperava oportunidades em que o trânsito tivesse calmo para parar sem risco pro transeunte. Me sentia toda orgulhosa de mim mesma, devo confessar, como se eu fosse a única pessoa do mundo que tinha consideração pelas minguadas, desrespeitadas e desacreditas faixas.

Tudo mudou quando vi uma reportagem sobre o trânsito em Brasília. A reportagem dizia que o trânsito lá era organizado e os motoristas paravam nas faixas de pedestres. Colocaram uma câmera escondida e provaram o que dizia. Era só a pessoa colocar o pezinho na faixa que todos os carros paravam para ela passar. Teve um momento que um carro parou até para um cachorro que atravessou “na faixa”. Fiquei toda admirada! Que lugar maravilhoso!  Lá os motoristas e até cachorros eram educados!

Mas felicidade suprema mesmo senti em Londres, onde encontrei as pessoas mais gentis e educadas que já vi em toda minha vida. “ London, is lovely so”. Lá não precisava nem colocar o pé na faixa, quando você ia se aproximando os carros já paravam. Como beatlemaníaca fui a faixa mais famosa do mundo, a da Abbey Road. Nessa faixa os carros param não somente para você atravessar mas para tirar fotos. Democraticamente assim: um grupo de pessoas tira fotos, depois um grupo de carros passa,  depois outro grupo de pessoas tira fotos e depois outro grupo de carros passa. Coisa linda demais de se ver... Fiquei extasiada, encantada. “I cross the streets without fear, everybody keeps the way clear”

Mas esse texto é sobre a minha cidade. E eu voltei para ela decidida a agir, não como uma inglesa, mas como uma brasileira, baiana consciente, e parar sempre, em todas as faixas. E descobri que parar na faixa de pedestre aqui tem um prazer especial, muito maior do que os brasilienses e londrinos poderiam sentir.

A travessia demora um pouco mais, é verdade, são várias etapas, mas você pode saborear cada segundo delas. Começa é quando você pára o carro. O pedestre que tá parado na faixa esperando uma folguinha no trânsito para passar correndo te olha surpreso ao ver você parar. É preciso que você faça um leve sinal afirmativo com a cabeça para ele sentir que a travessia é segura. Enquanto isso você tem que ficar atento à fila ao lado em caso de vias de mão dupla. Só para garantir, você abre seu vidro e faz sinal (aquele de colocar a palma da mão para baixo) para a fila ao lado também parar. (Por segurança não estique os braços demais.) Aí as vezes o carro que vem na fila ao lado pára, as vezes não. As vezes o pedestre tá no meio do caminho, na frente do seu carro, te olha com desespero sem saber se vai ou volta. Você continua firme e forte, parado esperando que a fila ao seu lado pare. As vezes algum obtuso fica buzinando atrás de você, mas isso não deve incomodar, porque o certo é o certo. E aí o pedestre atravessa, meio vacilante, olhando no seu olho para garantir que você tá vendo ele mesmo. E no final sempre vem um breve agradecimento, as vezes um sinal com as mãos, um breve aceno de cabeça, ou um simples olhar. Qualquer coisa que diz: “Obrigado por ter parado para mim.”

Quanta simbologia e quanto aprendizado há em uma simples faixa de pedestre. Instante  de confiança, ternura, cordialidade. Aos poucos vejo que as coisas estão começando a mudar. Após alguns atropelamentos em faixa de pedestres com vítimas fatais, percebo que os motoristas daqui estão ficando mais conscientes. É cada vez mais frequente a fila do lado parar, as vezes nem é preciso fazer sinal. As buzinadas de quem está atrás estão diminuindo e os pedestres começam a ganhar um pouco de confiança. Sei que num futuro próximo não vai mais existir toda essa cerimônia da faixa, nem os olhares e gestos de agradecimentos. O pedestre vai simplesmente atravessar e pronto. Como é o seu direito. Conforme está na lei, os veículos maiores devem proteger os menores e todos deve proteger o pedestre. Que bom que vai ser assim. Mas confesso que sentirei falta de toda essa cerimônia e principalmente da cumplicidade no olhar entre dois estranhos que se respeitam.


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28/08/2014

Hoje, dois meses após escrever esse texto parei em uma Faixa de Pedestre para um idoso atravessar e um carro que vinha atrás bateu no fundo do meu. Sorte que a batida não foi forte o suficiente para atropelar o pedestre. 

O motorista que bateu atrás reconheceu seu erro, se desculpou, mas não deixou de ouvir um pouco sobre código de trânsito e respeito ao pedestre. 

Eu tomei um baita susto na hora da batida (estava com minhas filhas no carro), depois tive que levar o carro para verificar se não houve dano e tive que consertar o sensor da ré.. Acabei atrasando o meu dia e adiando uma viagem que faria hoje. Um monte de aborrecimento só porque parei naquela bendita faixa. E quer saber? Vou continuar parando. "Porque o certo é certo mesmo que ninguém esteja fazendo e o errado é errado mesmo que todos estejam fazendo."