quinta-feira, 10 de setembro de 2015

DEPENDÊNCIA QUÍMICA- ANÁLISE DE CHRISTIANE F.

DEPENDÊNCIA QUÍMICA
ANÁLISE DE CHRISTIANE F.

UESC- Universidade Estadual de Santa Cruz


Autora: 
Raquel Rocha
Economista, Comunicóloga, Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Membro da Academia de Letras de Itabuna




Este trabalho aborda a questão da dependência química por se tratar de um grave problema para tanto para o sujeito quanto para toda a sociedade. Segundo I e II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas, em 2005 22,8% da população declarou ter experimentado drogas ilícitas. Este trabalho será realizado com base do campo da psicanálise e da saúde mental fazendo analogia ao filme “Christiane F. 13 anos, Drogada e Prostituída” e também ao livro homônimo. O trabalho inicia na temática das substâncias psicoativas, seu consumo e seus riscos, pela teoria psicanalítica e em seguida ilustra os dois primeiros pontos com a história de Christiane F.

2 SOBRE SUBSTÃNCIAS PSICOATIVAS, TEORIA PSICANALÍTICA E CHRISTIANE F.


2.1 Substâncias Psicoativas.

Substâncias Psicoativas são substâncias químicas que agem no sistema nervoso central, alterando a função cerebral e modificando o seu funcionamento e acarretando alterações físicas, psíquicas e comportamentais. As substâncias psicoativas podem levar a mudança na percepção da realidade, alterações de humor e de consciência.
As substâncias psicotrópicas podem ser administradas via oral, transdérmica (aplicação nas mucosas ou na pele); inalada (ou pulmonar), injetável (subcutânea, intramuscular e endovenosa). As origens podem ser naturais, semi-sintéticas e sintéticas e elas ainda se classificam em depressoras como o álcool e os opióides (ópio, morfina, heroína, entre outras), as estimulantes como cocaína, crack, anfetaminas, anorexígenos (moderadores do apetite), ecstasy, nicotina e  cafeína. Também as perturbadoras como maconha, haxixe e LSD.
Devido à complexidade do fenômeno do uso de drogas existem diversos modelos explicativos dos transtornos. De acordo com Perrenoud e Ribeiro (2011, p. 43): “Os modelos etiológicos sobre dependência de substâncias psicoativas tentam [...] explicar os motivos dos primeiros episódios de consumo, da permanência do uso ocasional, da manutenção do uso, do surgimento de padrões de uso nocivo e, por fim, as razões para o surgimento da dependência”.
O modelo moral foi a primeira tentativa da sociedade contemporânea para compreender e controlar o uso de substâncias psicoativas. Enfatiza a escolha pessoal como o fator do usuário e o abuso resultaria da necessidade de violação das normas sociais. No modelo da temperança (século XVIII) classifica o de substância como uma doença assim como no modelo da degenerescência neurológica (século XIX). No modelo do aconselhamento confrontativo ou modelo Synanon (1960) o usuário de drogas é percebido como indivíduo com um transtorno de personalidade. Os modelos naturais pressupõem uma tendência inativa e universal do consumo de SPA. Os modelos biológicos sugerem uma predisposição biológica para a instalação do uso indevido de substâncias psicoativas. Nos modelos sociais a ênfase é nos ambientes culturais e relações sociais. Os modelos espirituais têm a espiritualidade como influência positiva à recuperação dos dependentes. Os modelos de saúde pública correlacionam a interação entrem sujeito, ambiente e substância psicoativa. O modelo ecletismo informado assim como o modelo de saúde pública, busca articular fatores biológicos, psicológicos, sociais e farmacológicos e ainda a necessidade de uma abordagem específica para casa sujeito. Esse modelo reconhece o valor de todas as outros modelos. Os modelos psicológicos tem o foco no indivíduo e nos motivos que levaram ao consumo de drogas através da Teoria Psicanalítica (uso de SPA como sintoma; da teoria Comportamental (o uso de SPA consiste em um comportamento aprendido ou condicionado) e da teoria Sistêmica ( o uso de SPA e sua relação com um sistema social mais amplo. (PERRENOUD, L.O.; RIBEIRO, 2011)
  

2.2 Teoria Psicanalítica

Em relação a dependência química Freud (1929-1930) enfatiza a função das drogas no alívio da angustia pelas renúncias impostas pela civilização. É um atenuante de um sofrimento e ao mesmo a busca de prazer uma vez que seres humanos estão sempre em busca da felicidade. Freud coloca que os métodos mais interessantes para a prevenção do sofrimento são os que tendem a modificar o nosso organismo pois a presença de substâncias estranhas ao corpo, no sangue e nos tecidos, modifica as funções físicas, psíquicas e comportamentais provocando sensações de prazer imediatas.  Freud relaciona ainda a assinala o uso de drogas ao processo e castração ou ainda uma substituição das pulsões sexuais.. (Freud, 1897, 1898, 1905a, 1905b, 1905c, 1917).  Le Poulichet (1987) aborda a teoria freudiana do alívio da angústia e a substituição das pulsões proposta por Freud questionando os motivos de alguns indivíduos viciarem-se e outros não.
Já Lacan recorre a Marx e seu conceito de mais -valia[1] justificando que é pela renúncia ao gozo que ele surge. O objeto a, se dá em torno do mais gozar. Lacan também retoma a Freud e a sua teoria de castração, para ele é a castração que organiza o discurso do mestre, tanto na realidade psíquica quanto na realidade social e a mais-valia se dá em torno desse discurso e posteriormente também se torna o discurso capitalista. No processo de dependência química o objeto de gozo não é metaforizado, não é governado pelo significante destarte o toxicômano fica escravo da droga, em busca desse mais gozar infinito.

2.3 Christiane F. 13 anos drogada e prostituída

O filme e o livro Christiane F. 13 anos drogada e prostituída relata a vida da adolescente em detalhes e transmite a realidade do mundo das drogas. O filme se passa na cidade de Berlim onde Christiane mora com sua mãe e irmã menor num apartamento da cidade, a época é o pós-guerra, escrito em 1978. O livro retoma a infância da menina que cresceu num bairro pobre em meio a um ambiente violento. Em um dos trechos livro sobre sua infância Christiane revela a relação que tinha com seu pai.

Graças aos meus bichos, eu seria bastante feliz se as coisas não andassem de mal a pior com meu pai. Minha mãe trabalhava. Ele ficava em casa. O projeto da agência de matrimônios foi por água abaixo. Meu pai esperava que alguém lhe propusesse um trabalho à sua altura. E suas explosões de raiva eram cada vez mais frequentes. À noite, quando voltava do seu trabalho, minha mãe me ajudava a fazer os deveres da escola. Durante certo tempo, tive dificuldades em distinguir a letra H da letra K. Minha mãe me explicava com uma santa paciência, mas eu mal conseguia ouvi-la, pois sentia que a raiva de meu pai aumentava. Já sabia o que iria acontecer: ele iria até a cozinha, pegaria uma vassoura e me bateria.

Ainda sobre a violência do pai, em outro trecho Christiane narra:

Todas as noites perguntava, com muito jeito, ao meu pai se ele iria sair. Ele saía sempre, e nós, as três mulheres, respirávamos  aliviadas. Essas noites eram maravilhosamente tranquilas. É verdade que, quando ele voltava, aconteciam coisas que estragavam tudo. Na maioria das vezes, ele voltava bêbado. Qualquer pretexto, brinquedos ou roupa fora do lugar, motivava uma explosão. Uma das expressões favoritas de meu pai era que o importante na vida é ter ordem. E se, voltando bem no meio da noite, ele pusesse na cabeça que as minhas coisas estavam em desordem, tirava-me da cama e me dava uma surra. E depois era a vez de minha irmãzinha. Em seguida, jogava tudo no chão e nos dava cinco minutos para arrumar tudo de forma impecável. Em geral não conseguíamos fazê-lo a tempo, e chovia nova pancadaria.

Cansada da violência do marido com as filhas e com ela própria a mãe de Christiane se divorcia e, para compensar a violência do ex marido, ela passa a dar liberdade demais a filha. Ela se justifica sua atitude como uma tentativa de quebrar com um ciclo familiar de repressão: “Eu não queria pressionar Christiane. Eu mesma tinha sofrido muito com isso. Tive um pai extremamente severo.” 
Ao 13 anos Crhistine a é fascinada para conhecer a "Sound", uma nova discoteca que faz muito sucesso na cidade .Apesar de menor de idade ela pede a sua amiga para leva-la. Na Sound Christiane conhece e se apaixona por Detlev e através dele e de seus amigos se aproxima cada vez mais do mundo das drogas[2]. O primeiro contato de Crhistine é com as drogas leves como o álcool, o tabaco e a maconha. Um dia, no show de David Bowie Christiane, ao emprestar dinheiro para seus amigos comprarem heroína[3], a nova droga que entrava em cena, ela também experimenta a droga, através do processo de inalação. Buscando um maior efeito da droga, pouco tempo depois Christiane começa a injeta a heroína pela primeira vez numa viagem sem volta. A história de Christiane mostra claramente a sua passagem pelas as etapas Uso – Abuso- Dependência. Do “uso” esporádico de drogas mais leves ela passa ao “abuso” da heroína se injetando cada vez mais frequentemente até chegar ao estágio da “dependência” marcado por diversas crises.  Em um dos trechos do livro a mãe de Christiane F. reconhece que foi negligente com a filha:

Como pude não perceber o que estava acontecendo com Christiane? Por diversas vezes fiz esta pergunta a mim mesma. A resposta é simples, mas tive que conversar com vários pais para suportála: eu não queria reconhecer que minha filha tinha se tornado uma viciada. É simples. Enquanto pude, fechei os olhos para não enxergar.


Christiane, cada vez mais dependente da heroína e precisando de uma quantidade cada vez maior começa a se prostituir pra sustentar seu vício[4]. No início escolhia os clientes com quem faria programa e que se limitava a masturbá-los ou praticar sexo oral, com a crescente necessidade de injetar heroína cada vez mais Christiane passou a aceitar qualquer cliente e a praticar sexo dentro dos carros. Ficar sem a heroína era profundamente angustiante, ela relata uma de suas crises:

Quando minha mãe saiu para trabalhar, fui olhar-me no espelho. Pela primeira vez vi meus olhos em crise, numa pior mesmo! Eram só pupilas. Negros e tristes. Sem nenhuma expressão. Tive calor e fui molhar o rosto. Senti frio e mergulhei num banho  quentíssimo, de onde não ousava sair, pois fazia muito frio fora. Acrescentava água quente sem parar. Precisava fazer passar o tempo até o meio-dia. De manhã não havia ninguém na Estação Zoo: era impossível encontrar um cliente ou alguém que nos desse heroína. De manhã, ninguém tinha, e além do mais, estava cada vez mais difícil que alguém a passasse.

Devido a feridas provocadas por tantas picadas Christiane e seu namorado chegaram ao ponto de se injetar na veia do pescoço, as seringas eram compartilhadas no grupo sem nenhum cuidado[5]. Christiane passou a ter dificuldades para se alimentar, emagreceu, viu seus amigos morrerem e passou por diversas crises de abstinência.
Na falta da heroína Christiane e seus amigos usavam qualquer substãncia entorpecente, perdendo, muitas vezes a noção da realidade, num quadro típico de psicose induzida por drogas.

Á tarde, todos os diabos se libertaram. Tomamos pílulas aos montes, acompanhados de copos cheios de vinho. Apoiei minhas pernas no armário. Mas elas grudaram no armário e não havia maneira de soltá-las. Rolei no chão, mas meus pés ficaram. Tinha frio, tremia e aquela sujeira de suor fedia horrivelmente. Devia ser o veneno que saía por todos os poros. Tinha a verdadeira impressão de estar em pleno exorcismo.


Encontramos o quadro de alucinação ainda em outro trecho:

Lá pelas seis horas decidi voltar para casa. Já na cama quase tive um freak out (Em inglês no original: "alucinação". (N. do E.)), pela primeira vez na minha vida. Na parede eu tinha um pôster representando uma negra fumando um baseado. No canto inferior direito havia uma pequena mancha azul, que ia se transformando numa máscara deformada, num verdadeiro Frankenstein.

Ela se prostituiu por quase dois anos quando foi presa e acusada de tráfico e consumo de drogas. Durante seu julgamento num tribunal de infância e juventude, os jornalistas Kai Hermann e Horst Hieck ficaram fascinados com seu depoimento sobre o vício e fizeram uma entrevista com ela que acabou se tornando o famoso livro Wir Kinder vom Bahnhof Zoo. O livro acabou se tornando um best seller em vários países, inclusive no Brasil com o titulo Eu, Christiane F., 13 anos drogada e prostituída. Com o sucesso do livro, Christiane ficou mundialmente famosa e garantiu que estava “limpa” das drogas. Em 1983, no entanto, numa entrevista concedida a revista alemã Stern ela confessou que nunca havia realmente largado as drogas.
Atualmente Cristiane tem hepatite C e problemas circulatórios. Os médicos, além de afirmarem que, devido a eles, ela pode ter uma crise súbita, dizem também que seu estado é irreversível. Muitos amigos viciados morreram. Seu ex-namorado Detlef  é casa, tem dois filhos e  trabalha como motorista de ônibus em Berli. Ele afirma que se livrou das drogas em 1980. Em 2008, aos 46 anos de idade Christiane F. voltou a tomar drogas pesadas. Seu filho vive atualmente numa instituição para menores nas redondezas de Berlim.
  

REFERÊNCIAS

Alves, Vânia Sampaio. Modelo de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas no. Contexto do Centro de Atenção Psicossocial – CAPSad
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, nº 10, Editora Nova Cultural) determinada. O Ego, assim, é derrotado pelo Id e, portanto, arrancado da realidade.
FREUD, Sigmund. O mal estar da cultura  (1929 [1930] ). In: Œuvres Complètes, Paris: PUF, 1994.
LE POULICHET, Sylvie. Toxicomanies et psychanalyse – Les narcoses du désir. Paris: PUF, 1987.
I e II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil
PERRENOUD, L.O.; RIBEIRO, M. Etiologia dos transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas. In: DIEHL, A.; CORDEIRO, D.C.; LARANJEIRA, R. (Orgs.). Dependência química: prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed, 2011. p. 43-48





[1] Mais-valia é a diferença entre o valor criado pela utilização da força de trabalho e o valor dessa força de trabalho. O valor gerado pela força de trabalho desdobra-se em duas componentes: uma parte corresponde ao valor da própria força de trabalho, parcela reposta pelo salário pago; outra parte constitui o valor excedente ou mais-valia, que vai ser apropriado sobre a forma de lucro. A mais-valia corresponde portanto ao valor do sobretrabalho, ou seja, do trabalho não pago realizado pelo trabalhador para o capitalista e que constitui a base da repartição de rendimentos e da acumulação de capital (Fonte BIBLIOTECA VIRTUAL de Derecho, Economía y Ciencias Sociales ANTECEDENTES DO CAPITALISMO- Carlos Gomes.)
[2] Modelos Sociais – Ênfase nos ambientes culturais e relações sociais. Pressupõe que interações sociais são agentes capazes de moldar hábitos (reforçadores sociais), incluindo o de consumo de SPAs.

[3] A Heroína faz parte do grupo dos opionóide, uma droga depressoras que promovem uma redução das atividades cerebrais e das funções orgânicas de modo geral. Segundo o médico Drazio Varela: A heroína vicia mais que a cocaína, maconha e as anfetaminas; só perde para a nicotina. As primeiras doses deixam um bem estar desconhecido, profundo e duradouro, sensação cada vez mais fugaz à medida que se instala a tolerância causada pelo uso repetitivo.

[4] Tolerância – expressa pela necessidade de doses cada vez maiores de uma substância para atingir o efeito desejado;
[5] Segundo o Manual de riscos e danos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas o consumo de drogas pode levar a: ráticas sexuais desprotegidas, compartilhamento de seringas e agulhas e exposição a infecções de transmissão sexual e parenteral, a exemplo do HIV, hepatites B e C, HTLV e sífilis;

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