domingo, 16 de outubro de 2016

A MORTE E O AMOR EM TODOS OS CANTOS DA CASA

 
Por Raquel Rocha
Comunicóloga,  Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna

 Dia 14/10/2016

 
A viagem foi exaustiva, das 11 da noite às 03 da madrugada. Viajar à noite não é problema, mas quando você está preparada pra dormir e recebe uma notícia de morte, então tudo fica meio surreal.

Quatro horas na estrada. Quem já passou por algo assim sabe que a pior parte é a chegada, talvez só não seja pior que a saída da pessoa amada ao cemitério... E assim foi a chegada, chegamos com nossas lágrimas, chegamos para viver o triste momento da despedida. Já estava tudo arrumado, caixão, coroa de flores, mas faltava o local. Cidade pequena não tem lugar para velório, as pessoas são veladas em casa mesmo. Ocorre que alguém havia quebrado a chave dentro da fechadura nesse mesmo dia, e a porta de casa da minha mãe não abria.  Minha avó estava sendo velada num local improvisado com 3 pessoas da família e mais 4 visitantes. Não sei qual a palavra que define a pessoa que vai ao velório... na dúvida, fica visitante mesmo.

A fechadura foi quebrada, uma pequena procissão as 03 da madrugada de onze pessoas acompanharam o translado do caixão. Onze pessoas, um caixão, cadeiras, suporte do caixão, livro de assinatura, tapete, coroa de flores...   A pequena procissão poderia ter sido a mais surreal das cenas mas ainda não foi. Trouxemos tudo pela rua e remontamos o pequeno velório na sala da casa.

Com a família aumentada nossos 4 visitantes se sentiram confortáveis para irem descansar em suas casas. Não chegaria mais ninguém. Fechamos a porta. Novamente estávamos na intimidade da família, da nossa casa. Incrivelmente aquele caixão no meio parecia tão natural... como se o lugar dele fosse ali na nossa casa, entre nós.
As crianças não tinham medo, conversavam com a bizavó já gelada, perguntavam coisas, sabiam que o momento não era de brincadeira, mas também sabiam que não era de desespero, havia respeito, serenidade e saudades.
Assim vimos o dia amanhecer, sentados na sala, conversando, relembrando, com minha avó no meio de nós.
Com o amanhecer do dia o cansaço foi se fazendo mais forte que nós, íamos deitar aos poucos...  deixar a sala era difícil tínhamos a sensação de que estávamos deixando-a sozinha... Eu queria colocar um colchão no chão para dormir ao lado do caixão e só não o fiz por falta de espaço. As 6 da manhã chegou minha vez de ser derrotada pelo cansaço, fui para o quarto ao lado, o corpo desabou numa cama, mas de alguma forma continuei na sala. Ouvia tudo, sentia tudo,
Duas horas depois levantei, o corpo pesado queria continuar deitado mas eu o arrastei para a posição vertical. Não havia tido troca de roupa, levantei pronta para continuar no velório. Sonolenta, abri a porta do quarto e me vi de cara com o caixão dando "Bom dia vó...". Toquei em sua testa, como quem toca na testa de uma criança febril esperando que ela esteja menos quente. Mas minha avó não estava menos fria.
Tudo continuou tão real como num filme de Almodóvar, tão irreal quanto os velórios americanos. Sempre achei estranho as pessoas comerem, falarem de comida nos velórios americanos, mas ali estava eu, tomando café , falando do almoço, do que seria feito, das pessoa que chegariam. Ninguém falava em hora de enterro, era como se quiséssemos deixá-la com a família pra sempre.
Não achem esse texto mórbido, ou achem se quiserem... pouco importa, mas de fato a morte nunca tinha se apresentado de forma tão natural para mim.
Continuamos só nós... pouquíssimas pessoas chegavam, um ou outro idoso da vizinhança que havia recebido a notícia e foram ao velório mesmo sem ter conhecido minha avó. Tanto desconhecimento decorre do fato de que minha avó morou a vida inteira em outro estado, Há quatro anos começou a apresentar sintomas de Alzheimer, na época meu avó já estava de cama, sem lucidez alguma. Trouxemos ambos para a Bahia, as filhas se revezaram bravamente no cuidado dos dois idosos. Minha avó chegou andando, conversando, mas não conhecia ninguém, seu olhar era distante, era como se ela não estivesse entre nós. Eu perguntava: “Vó, a senhora sabe quem sou eu?”  Ela: “Não...” Eu explicava “Sou Raquel vó, sua neta” Algo clareava na mente dela e ela dizia com olhar de reconhecimento “Ah, é a Raquelzinha!”. Sentia que ela havia me reconhecido mas 40 segundos depois quando perguntava novamente “Vó, sabe quem sou eu?” Ela respondia “Não...”
Em pouco tempo ela não sabia mais quem era ela. Minha avó agia como criança, quebrava as coisas, fugia de casa, se machucava. Um dia fugiu da cama a noite, espalhou bananas pela casa e acabou escorregando nessas bananas. Quebrou a bacia e não andou mais. O Alzheimer a levou aos poucos nesses quatro anos, acamada ela chamava minha mãe de sua mãe, já não comia sozinha, as filhas lhe davam mamadeira, foi deixando de falar, foi perdendo peso apesar da quantidade de mamadeiras que tomava, seu olhar cada vez mais perdido, sua fala mais fraca. No último ano ela mal abria o olho, não falava mais nada, a vezes gemia. Ela sofria.
Minha vó não havia morrido na noite passada, minha avó morreu aos poucos durante quatro anos. Tivemos quatro anos para elaborar essa perda, vivemos esse luto por 4 anos, por isso seu corpo no meio da sala não nos causava desespero, por isso aquela sensação de paz, de descanso, de que ela estava finalmente livre das dores, da sua mente embaralhada, do seu corpo que definhava.
Nada para minha avó foi fácil, nem sua vida nem sua morte. Minha avó perdeu sua mãe quando era muito pequena, seu pai casou-se novamente. Minha avó foi dada (dada mesmo) em casamento ao meu avô, 14 anos mais velho que ela, e que já havia sido casado com sua irmã mais velha e esta havia morrido de parto. A mais velha não deu conta, leve a mais nova, como uma mercadoria. Foi assim.
Meu avô não era fácil, era grosso, falava gritando. Minha avó teve 6 filhos com ele. Acredito que a vida com ele era menos ruim que a vida na casa do pai, porque ela nunca falou em se separar. Será que as mulheres de antigamente sabiam que tinham o direito de se separar? O fato é que minha avó permaneceu ao lado do meu avô por toda sua vida, cuidou dele até onde aguentou. Seu nome foi o último que ela deixou de falar.  Talvez o amasse, dentro do que ela conhecia do amor.
Hoje, meu avô, acamado na casa ao lado foi comunicado da morte dela. Mas ele não sabia quem era ela, não sabia o que era a morte. Meu pai o trouxe de cadeira de rodas para perto do caixão, ele olhou para o caixão como quem olhava para nada. Ele também já não está aqui, se foi antes dela.
Mais familiares chegaram...  Nos abraçávamos naquela sala vazia na cumplicidade da família, família que se entende só pelo olhar. Minha irmã chegou, parecia sofrida, ela morou com minha mãe uma parte desses quatro anos, e a ajudou cuidar da minha avó.
Um pastor chegou, ficou por cerca de 20 minutos e disse algumas palavras. Minha avó passou a vida na igreja católica mais havia de batizado na igreja evangélica antes de ficar doente. Acho que ela teria gostado das palavras ditas.
O dia pareceu durar uma semana, mas estávamos bem, estávamos juntos esticando nosso tempo com ela. Notei que nenhum jovem apareceu, nenhuma amiga, nem minha, nem das minhas irmãs, nem dos meus sobrinhos...  Disseram que iam, mas de fato, ninguém foi. Acho que os jovens não gostam de velório, num velório a morte nos esfrega na cara que nosso fim será aquele. E para que pensar em morte quando temos tanta vida?
Eu também não ia muito a velórios, não ia porque não sabia o quanto era importante ir. Mas ano passado meu sogro faleceu, inesperadamente, quando parecia forte e saudável, e eu me lembro de cada rosto amigo que esteve conosco nesse dia. Depois disso, passei a ir a todos os velórios.
Os idosos sempre vão, como se eles estivesse fazendo um depósito. Como se sua ida aos velórios dos outros garantisse que pessoas irão aos seus.  Eu acho que funciona... Porque nessa vida tudo que a gente planta a gente colhe.
O enterro foi no final da tarde, o sol já se preparava para se por. Não podíamos adiar mais. Não vou relatar a parte do cemitério... que como disse no começo desse texto é pior parte. Deixar o corpo de uma pessoa amada no cemitério é doloroso. Não gosto do formato dos cemitérios, gostaria que minha vó tivesse ido pata uma cápsula orgânica e se transformado em uma linda árvore.
Eu acho que do dia de hoje vou lembrar dela em casa, no meio da sala com a família, mesmo que dentro daquele caixão estivesse só seu corpo. Vou lembrar da saudade que sentimos, do carinho, das lembranças que lembramos, dos abraços em família, dos olhares que diziam mais que palavras, vou lembrar das crianças entendendo a morte como algo natural, das três irmãs que se despediam da mãe como se quatro anos de preparo não houvesse sido suficiente.  Nem uma vida inteira seria.
Na cidade grande onde moro os mortos não são mais velados em casa, existem locais para isso, locais onde sai um corpo e entra outro, como numa linha de produção. Locais frios. Acho os velórios em casa mais respeitoso, mais carinhosos. Não entendo por que as pessoas querem tanto se distanciar da morte, tiram os mortos das suas casas, não deixam as crianças verem, não entram em cemitério, não falam no assunto... Estão negando seu próprio caminho.
Parte desse texto foi escrito ao lado do seu caixão, a parte final agora, na volta do cemitério. Escrevo tentando sublimar mas também tentando entender. Minha avó me ensinou muitas coisas  em vida porém a mais importante ela me ensinou hoje, me ensinou que nossa partida dessa vida pode ser repleta de paz, de amor e de carinho.

Gosto de pensar em minha avó entrando no reino dos céus com uma chuva de pétalas de rosas e um monte de gente amada a esperando. Dê um abraço na tia Maria e no tio João por mim vó. Fiquem juntos aí em cima como estiveram juntos aqui na terra, desfrutem do acolhimento de Deus e da sensação de uma vida completa, na qual muitas coisas faltaram, porém o mais importante sobrou: O AMOR.
 


 

 




 

 

 

 




 

 

 

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