sábado, 29 de abril de 2017

Jaci era Alegria

 
 
Por Raquel Rocha
Comunicóloga,  Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna
 
 
Dia de sábado ela chegava cedíssimo com sua bicicleta. Arrumava a casa toda em 30 minutos, quando eu acordava ela estava com o maior sorriso do mundo nos lábios, uma caneca de café para mim nas mãos e o convite: "Já tá tudo pronto! Vamos bater perna na rua?" Eu dizia que a gente não tinha nada pra comprar na rua e ela repetia "Vamos só bater perna!!!"
Como resistir a um convite desses feito com um sorriso tão grande? Enquanto eu pensava na roupa que ia vestir ela já tinha arrumado Melzinha, que na época tinha pouco mais de 6 anos. Já tinha arrumado, dado café da manhã e feito um penteado lindo. Eu nunca entendi aquela habilidade que Jaci tinha de fazer tudo tão rápido e com tanto amor.
Íamos pra rua, ela ia contando que tinha chegado de alguma festa as 4 manhã e eu não acreditava como alguém que tinha dormido menos de 3 horas podia acordar com tanta energia e tanta alegria.
Sua valentia era tão grande quanto sua alegria. Jaci não deixava nada barato, xingava quem roubasse minha vaga para estacionar, gritava com quem parava o carro na rua pra conversar, falava grosso com os flanelinhas. Ela não tinha filtros, nem hipocrisia.
Andávamos, contávamos história, comprávamos bobagens que não precisávamos. Ela corria pela rua como uma criança com Mel, eu reclamava, mas era da boca pra fora, porque no fundo sabia que Mel com ela estava segura. Segura e feliz. Jaci mataria e morreria para defender minha filha de algo ruim.
Entrávamos em lojas, quando eu vestia roupa tinha que sair do provador e mostrar pra ela. Ela vestia também, parecia uma criança quando gostava de algo, “Passa o cartão?” pedia ela sem pensar no amanhã. Jaci não queria saber o preço, só queria ser feliz!
Sempre Finalizávamos nossas manhãs de sábado comendo pasteis em uma barraca de pé de muro com aparência feia. Eu não comeria lá sozinha, mas com Jaci parecia que tudo era permitido.
Chegávamos em casa cheias de sacolas empanturradas de pastéis e ela me perguntava "Precisa fazer almoço?" Claro que não precisava. Sentávamos no chão, íamos abrir sacolas, rir, fazer uma bagunça enorme que ela daria um jeito de arrumar em 3 minutos. Vamos experimentar de novo? E lá ia Jaci se vestir e vestir minha Mel com as roupas novas, desfilavam pela casa, pulavam, riam alto felizes.
Jaci foi um anjo em minha vida, o anjo mais defeituoso que já vi e também mais amoroso. O carinho que Jaci deu para minha Mel não tem preço, Jaci trouxe alegria para minha casa e para minha vida durante anos.
Um dia Jaci foi embora, se apaixonou, largou tudo, marido, emprego e seguiu seu coração... Jaci só queria ser feliz! Hoje seus filhos lhe deram netos, ela é uma avó com cara de menina. Jaci sempre será menina. Nas fotos vejo-a pegando-os no colo como pegava minha Mel, eu olho para aquelas crianças e sei que eles são extremamente sortudas por terem Jaci na vida deles, assim como eu tive.
Hoje é sábado, hoje eu acordei e senti saudade enorme de ouvir sua voz excitada me chamando: "Vamos bater perna na rua?"
 
 

quarta-feira, 26 de abril de 2017

A Psicopatia no Livro O COLECIONADOR de John Fowles

 
Por Raquel Rocha
Comunicóloga,  Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna
 
 
 
O Colecionados de John Fowles, best seller mundial lançado em 1963.
 
Frederick Clegg é um jovem que trabalha em uma repartição pública. Fred não tem amigos e não faz questão de tê-los. Nunca namorou. Não parece gostar nem mesmo da sua tia e sua prima, sua única família.
 
Ele nutre uma obsessão por Miranda, fica na janela do trabalho esperando ela passar, observa ela na rua, uma vez pegou o trem, sentou atrás dela. Além de observa-la ele anotava todos os passos dela em um diário.  Miranda era bonita, jovial, apaixonada por artes.
 
Abaixo um trecho do livro que descreve a infância de Frederick pra gente tentar entender a formação da sua personalidade:
 
“O meu pai morreu num desastre de automóvel. Eu tinha dois anos.
 Isso foi em 1937. Ele estava bêbado, mas a Tia Annie disse sempre que foi minha mãe quem o levou a beber. Nunca me disseram o que aconteceu, na realidade, mas mamãe foi-se embora pouco tempo depois e deixou-me com Tia Annie. Só queria divertir-se. A minha prima Mabel contou-me, certa vez (quando éramos garotos, durante uma zanga) que ela era uma mulher das ruas e que se fora com um estrangeiro. Fui estúpido e perguntei logo a Tia Annie se era verdade, e. claro, esta inventou uma mentira e nunca me disse o que quer que fosse sobre mamãe. Não me importo, agora, se ela ainda estiver viva; não a desejo conhecer. Não tenho o menor interesse nisso. A Tia Annie sempre pareceu julgar que eu tivera sorte em verme livre de mamãe e eu concordo inteiramente com ela.
Assim, fui educado por Tia Annie e pelo Tio Dick, juntamente com sua filha Mabel. A Tia Annie era a irmã mais velha de meu pai.
O Tio Dick morreu quando eu tinha quinze anos, em 1950. “
 
Ele é um tipo esquisito, que despreza todo mundo e gosta de passar seus momentos sozinhos. Seus únicos prazeres de Fred são: observar Miranda e caçar borboletas para a coleção que ele mantém há anos. Esse jovem estranho acaba ganhando uma fortuna numa espécie de loteria do futebol. Mas o que fazer com todo esse dinheiro? Fred não gostava de festas, não tinha sonhos, não desejava comprar nada, a única coisa que ele desejava era Miranda.
 
Ele tenta ter relações com uma prostituta mas não consegue. Sua sexualidade é expressa através do consumo de pornografias, com as quais ele alterna sensações de prazer e nojo. Sem encontrar nenhuma forma de satisfação com sua fortuna Fred volta a seguir Miranda, agora em Londres, para onde Miranda tinha se mudado a fim de estudar artes.
 
Um dia Fred lê num jornal de uma propriedade a venda, um lugar afastado de tudo. Ao visitar o local ele descobre que a casa possui um porão praticamente invisível ao mundo. A partir desse momento uma ideia começa a germinar em sua cabeça: Sequestrar Miranda. 
 
Fred cuida de tudo minuciosamente, desliga os telefones, reforma a casa, reforça as parede do porão, faz o isolamento acústico, coloca um porta grossa com metal no interior, em seguida ele compra “tudo” que alguém pode precisar pra viver: roupas, livros, revistas. Ele segue Miranda até que encontra uma oportunidade e a sequestra.
 
A primeira parte do livro é toda narrada pelo próprio Frederick, quem ele é, sua obsessão por Miranda, o desenvolvimento do seu plano e sua relação com a jovem enclausurada. Ele a enche de presentes, tenta ser gentil, em sua mente doentia Miranda vai se apaixonar por ele e eles vão viver juntos e felizes. Claro que não é isso que acontece, no fundo ele sabe que nunca terá o amor daquela jovem, que ela será sempre sua prisioneira, como uma das borboletas da sua coleção. Seu espécime mais bela e mais rara. Na verdade ele não a ama, ele a quer possuir simplesmente. Ele sequer tenta ter uma relação sexual com ela, só quer sentir que ela pertence a ele.
 
A relação carcereiro e prisioneira muda constantemente, Miranda grita, esperneia, sente raiva, se retrai, tenta fugir, tenta conversar, tenta negociar, tenta enganá-lo, seduzi-lo, tenta desesperadamente se livrar daquela situação mas tudo o que ela faz parece inútil.
 
Fred vai percebendo as artimanhas de Miranda e se tornando cada vez mais metódico, às vezes cruel. Em determinados trechos do livro parece ter perdido interesse por ela mas em nenhum momento cogita liberta-la.
 
A segunda parte do livro é toda narrada por Miranda. É o diário que a jovem escreveu desde o momento em que foi aprisionada. Só nessa segunda metade é que conhecemos Miranda como ela é, seu gosto pela liberdade, suas dúvidas da juventude, o que era importante na vida dela, seu desejo de sair dali e fazer as coisas diferentes.  Se você não consegue desgrudar do livro na primeira parte, talvez você ache a segunda um pouco cansativa. Miranda no tem nada de especial, é uma jovem comum como tantas outras, talvez um pouco mais mimada e até arrogante. Se a narrativa de Fred foca nela e no seu aprisionamento a dela viaja por situações e personagens que não acrescentam muito a narrativa do livro.
 
Na primeira metade do livro temos a narrativa de Fred, na segunda metade o diário de Miranda. Na terceira parte temos o desfecho dessa situação com cerca de 14 páginas e a Quarta parte é uma espécie de Epílogo.
 
Não ficamos encantados ao conhecermos Miranda, mas isso não diminui nossa angústia pelo seu confinamento. Tudo que ele faz por ela, dando-lhe roupas, livros, quadros e revistas não ameniza a crueldade do seu ato. E durante o livro percebemos que um aprisionamento como esse, sem data de acabar é muito pior do que do que uma morte, porque você priva a pessoa de sua vida, em vida.
 
O personagem Fred tem claros traços de transtorno de personalidade antissocial (também chamado de psicopatia). Essa desordem de personalidade caracterizada pelo desprezo as regras sociais, frieza e ausência de empatia. A falta de emoções e ausência de culpa são as principais características do psicopata. Fred não se importa com o sofrimento de Miranda, ele a mantém presa da mesma forma como faz com suas borboletas.                                             
   
O Psicopata é um indivíduo amoral que vive segundo suas próprias regras. Fred sente vontade de sequestrar Miranda e a sequestra, ele não se incomoda com o certo e o errado. Os psicopatas veem as pessoas como coisas, e como tais podem usadas segundo seus interesses.
 
Também não possuem emoções por isso são extremamente racionais. Há um MITO que diz que todo psicopata é inteligente. Não é. Cientistas americanos e britânicos publicaram uma recente pesquisa que mostra que na verdade os psicopatas tem uma inteligência abaixo da média. Os pesquisadores  descobriram isso depois de avaliar 187 estudos que relacionam a psicopatia com as capacidades intelectuais.  Segundo um dos pesquisadores da Universidade de St. Louis, no Missouri esse mito foi criado porque as pessoas relacionam a inteligência com duas características típicas de um psicopata: a manipulação e a sedução.
 
Acrescenta-se aí o personagem Hannibal Lecter, o psicopata mais famoso do cinema, que era inteligentíssimo e ainda fato dessas pessoas por serem frias, acabam sendo racionais e planejam seus atos com muito cuidado. Como resultado dessa mistura temos o mito de que o psicopata tem inteligência acima da média.
 
Fred confirma isso. Ele tem dificuldades em conversa sobre qualquer assunto mais profundo com Miranda, seja sobre pintura, literatura ou atualidades. Ele até finge interesse para agradar Miranda, mas fica evidente que ele não tem o mesmo nível intelectual que sua prisioneira.
 
Em determinado momento da obra os mais desatentos podem achar que Fred ama Miranda. Não ama. Ele apenas quer possuí-la. Como não há sentimento, no psicopata também não há o apego. E essa característica nos é revelada de forma perturbadora no final do livro.
 
O Colecionador é um livro inquietante, que fala nas linhas e nas entrelinhas. Livro para ser lido, digerido e relido. Não posso garantir que você vai gostar, mas posso garantir que essa obra não vai sair da sua cabeça.

Como Referir:  ROCHA, Raquel. A Psicopatia no Livro O COLECIONADOR de John Fowles Esquizofrenia Residual. Disponível em: <http://soliloquiospsicanaliticos.blogspot.com > Acesso em: __/__/____  

Olha o aipim aêê!


Por Raquel Rocha
Comunicóloga,  Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna
 
"Olha o aipim aêê!" Ele passa todos dos dias na rua com seu carrinho de mão, já tarde da noite. Ele tem um vozeirão forte, achei que ele tinha uns 40 anos, mas depois vi que ele tem uns 20. Ele sobre e desce a ladeira gritando “Olha o aipim aêê!” às 20, 21, 22:00 horas... E ele sobe e desce empurrando seu carrinho de mão.
A primeira veze que ouvi “Olha o aipim aêê” achei estranho. Há séculos não via mais ninguém passar na rua gritando para vender nada. Lembrou-me quando morei no interio  do interior, naquela cidadezinha que de tão pequena nem cidade era ainda. Lá tudo vinha até a gente, o leite, as hortaliças, as frutas, aquela farinha e aquele café torradinhos na mesma madrugada... Achei que meu vendedor de aipim ia passar só aquela vez, senti –me inebriada de nostalgia e admiração e o deixei passar.

Mas ele passou a segunda vez, “Olha o aipim aêê” e eu quis escancaram a porta e sair esbaforida mas a rua estava escura, deserta, e eu sozinha em casa, meus critérios de segurança me retiveram dentro da fortaleza de coração partido.

Na terceira vez que ele passou eu estava decidida a comprar, já tinha deixado até o dinheiro separado, mas quando ouvi “ Olha o aipim aêê” estava no banho e mesmo saindo ensaboada, vestindo a roupa ao avesso, quando botei a cara na porta o vendedor já estava longe.

Hoje finalmente consegui alcançá-lo, gritei da janela “Moço, quanto é o aipim?” Ele gritou da rua “É dois e cinquenta Dona.” Aí eu disse feito criança “Separa dois que estou descendo!!!” 

Peguei meus dois pacotes de aipim como quem pegava dois tesouros. Não é que eu goste tanto assim de aipim, não é que a rua não tenha aipim à venda em cada esquina, é que eu olho para aquele homem subindo e descendo a rua tarde da noite com sua carrinho de aipim, trabalhando honestamente, suadamente, animadamente e eu não tenho como não sentir uma ADMIRAÇÃO monumental por esse ser humano...

E agora aqui em casa vai ser assim, aipim cozido, aipim frito, bolo de aipim, escondidinho de aipim, cocada de aipim, caldo de aipim, aipim com manteiga, com queijo, com ovo, com carne seca e me mandem receitas de aipim!!!

Porque sou dessas, movida pela Nostalgia e pelo Coração.

Olha o aipim aêê!

 
 
 
 
 

sábado, 22 de abril de 2017

"Mainha, Como a senhora está?"

Minha mãe é assim: 
Eu pergunto "Mainha, Como a senhora está?" Aí ela me conta como ela acordou, o que ela comeu, o que ela fez após o café, como está o jardim dela, quais plantas estão bonitas quais estão feias, se foi a rua, quem ela encontrou, o que conversaram, o que ela comprou, que horas chegou em casa, como ela preparou a salada e todo o resto do almoço, se o suco ficou grosso ou ralo, aí ela fala do clima, me dá noticias dos parentes do Ceará, da Bahia e dos de São Paulo, me dá notícia dos sobrinhos, das notas, de quem fica muito tempo no celular, fala de quem tá com as cuecas pequenas, de quem precisa aparar as pontas dos cabelos, fala de gente que não faço a mínima ideia quem é, fala das flores, do pé de seriguela, do caqui, do abacate, dos planos, da vida, do tempo... E eu adoro ouvi-la.


Essa é minha mãe. Fui criada assim, com muitas palavras, muitas histórias, muitas opiniões.

Então, só pra você saber, se eu perguntar "Como você está" e você me responder com uma única palavra "bem", eu sempre vou achar estranho...
 

segunda-feira, 17 de abril de 2017

A Casa Mais Feliz do Mundo.


 
Por Raquel Rocha
Comunicóloga,  Economista
Psicanalista e Especialista em Saúde Mental
Especialista em Neuropsicologia
Membro da Academia de Letras de Itabuna






 
Ficava na beira da estrada, uma estrada de terra amarela, numa  época em que quase não havia carros, o movimento que se via era de cavalos, jumentos, pessoas a pé. As crianças faziam festa, eufóricas, ao avistarem qualquer movimento ao longe. Seu Manoel venerava aquela casa, a casa que foi construída por seu pai, ele adorava morar na beira da estrada, adorava conversar com as dezenas de compadres e comadres que passavam, adorava servir água aos passantes porque no sertão, de alguma forma, todos se ajudam. Seu pai havia construído e morrido naquela casa e Seu Manoel sentia-se orgulhoso de tê-la herdado. Pretendia honrar aquele local até o fim dos seus dias.

Quando seu Manoel estava na lida, Dona Maria era quem fazia as honras da casa. Lá vinha um viajante ao longe e Dona Maria já corria ao pote para pegar água fresquinha. Os nove filhos olhavam curiosos e excitados para os que passavam. De onde vinham? Para onde iam? Poucas vezes eles haviam saído dali e o que tinham visto quando saíram era sempre menor que aquela casa. Aquela era maior e mais feliz casa do mundo.

Seu Manoel parecia mesmo era um Rei na varanda daquela grande casa, com sua esposa ao lado e seus nove filhos brincando no terreiro.

O tempo foi passando e os carros foram surgindo... Estes levantavam mais poeira que os animais.  As pessoas dos carros não paravam para pedir água muito menos para aquele “dedim de prosa”. Dona Maria não notou, estava muito ocupada nas tarefas de casa, limpando poeira, jogando água no terreiro antes de varrer com a vassoura feita de alecrim do mato. Mas seu Manoel notou a mudança, as pessoas dos carros nem olhavam mais para sua casa na beira da estrada.

 As crianças foram crescendo... de repente aquela casa enorme parecia pequena para elas. Uma a uma foram ganhando o mundo. Arrumavam empregos, esposas e maridos...  A chuva era cada vez mais escassa, a poeira cada vez maior. Ficou apenas Seu Manoel e Dona Maria naquela casa. Jamais sairiam de lá, juraram morrer naquele pedaço de chão.

 Nas datas religiosas os filhos não apareciam, estavam longe, as passagens eram caras, os trabalhos não davam folgas. Os compadres e comadres já não os visitavam com tanta frequência, estavam doentes, artrite, artrose, coração...  Aos poucos iam morrendo e somente nesses momentos Seu Manoel e Dona Maria deixavam aquela casa, para se despedir dos amigos, para velar seus corpos a noite inteira com o respeito e afeto de uma vida de cumplicidade e amor àquele chão amarelo.

Um dia Dona Maria também morreu. Não ficou doente, não sofreu, não foi ao hospital, apenas o dia amanheceu e ela não se levantou como de costume para cuidar daquela casa. Poucas pessoas no velório, nem todos os filhos puderam vir. Empregos, filhos, distância... Seu Manoel ficou sozinho naquela casa que para ele ainda era a maior do mundo, mas já não era a mais feliz.

Seu Manoel passou a acordar e se ver sozinho... Aprendeu a preparar sua comida, algo que nunca tinha feito antes. Não aprendeu a limpar a casa, não como Dona Maria. A poeira se acumulava, ele ouvia a voz da esposa mandando  ele tirar as botas antes de entrar em casa, ouvia os gritos animados das crianças que haviam avistado movimento na estrada, ouvia a voz forte do seu pai contando sobre como foi construir aquela casa numa época que as distâncias pareciam muito mais distantes. Seu Manoel se sentia tão solitário que passou a conversar com aquelas vozes... Ele não tomava banho porque Dona Maria não estava lá para mandar, ele já não preparava as refeições porque era triste comer sozinho.

A chuva era cada vez mais escassa, a poeira cada vez maior. Seu Manoel sentava na varanda dias e dias e ia ficando tão amarelado e tão envelhecido quanto aquela casa. Um dia sua filha apareceu para lhe visitar e vendo o estado do pai, sujo e conversando sozinho decidiu que ele não poderia mais viver assim. Seu  Manoel se recusou a sair, disse que morreria naquela casa como seu pai. Mas pessoas vieram, deram-lhe remédios e ele foi arrancado de lá.

Hoje seu Manoel não tem mais nome, seu genro e chama de “velho”.  O aceita em casa por causa da sua aposentadoria. Seu Manoel não tem mais a cor da poeira, tem uma cor pálida de quem nunca sai de um quarto minúsculo. Ela toma muitos comprimidos, mas ainda assim ouve as vozes, de Dona Maria, dos filhos pequenos e do seu velho pai pedindo-lhe que cuide da casa. Seu Manoel não pode cumprir o que prometeu ao pai, ele não consegue mais nem se levantar sozinho, ele não tem mais vontade própria, ele deixou de ser Rei.

A velha casa foi posta a venda há muito tempo, mas ninguém quis comprar, A chuva é cada vez mais escassa, a poeira cada vez maior. Quando vendida, aquela pequena terra será dividido por nove filhos, não vai dar quase nada... por isso a velha casa fica esquecida, na beira da estrada, abandonada, empoeirada... Ela é triste mas ainda conserva o orgulho de um dia ter sido a casa mais feliz do mundo.

Eu sei disso porque passei por lá, eu estava de carro mas parei como os antigos paravam em seus cavalos. Parei porque quando a gente vê uma casa na beira da estrada a gente tem que parar. Parei para um dedim de prosa e aquela velha casa me contou...

 

 

 
 

sábado, 1 de abril de 2017

Quando se perde um Amor


Resumo do Artigo: A DOR DA PERDA AMOROSA E A GESTALT-TERAPIA
Autora: Sarah Batista Leite de Lima
Revista IGT na Rede, v. 5, nº 9, 2008, p.114-125. ISSN 1807-2526

 
 

Para Zinker (2001), o amor tem significados diferentes em diversos momentos de vida de uma pessoa, porém a experiência de se apaixonar e a necessidade de fusão continuam sendo um enigma essencial que não depende das palavras. Há um reconhecimento de que não se é inteiro sem o outro, não se é pleno em si mesmo, mas também inexiste um reconhecimento do outro como pessoa inteira.  

 
A separação, para quem vivia uma relação de amor, assemelha-se a uma mutilação.

Além desse sofrimento, o parceiro que foi deixado se martiriza, buscando em si mesmo erros e falhas que justifiquem o término, e nesse momento a culpa passa a ser um sentimento inevitável. Sentir-se culpado é mais tolerável do que sentir-se rejeitado. Conforme Caridade.

 
“Saber-se desejado, importante e significativo para o outro é a maior ânsia humana. O que se deseja mais intensamente é que o outro nos deseje. Nada alcança maior importância. Sentir-se objeto de desejo para o outro torna-se grande referência de saúde emocional nas pessoas” (Caridade (1997, p. 97).

 Frente a essa rejeição o indivíduo fica ferido narcisicamente. Instaura-se no indivíduo um doer desmedido, a orfandade amorosa transforma-se em orfandade existencial.

Segundo Caruso (1989), estudar a separação amorosa significa estudar a presença da morte na vida. É a vivência da morte do outro na consciência de quem sofre, e o que é narcisicamente mais doloroso para quem sofre: a vivência da morte dele na consciência do outro.


Caridade (1997) diz que há uma sentença de dupla morte com a separação. “O apaixonado sabe que morreu dentro do outro. Tem que aceitar a vivência dessa morte ao mesmo tempo em que vai lutar  desesperadamente para matar o outro que ficou dentro de si” (Caridade 1997 p. 98).

 
“A perda é um fantasma que aterroriza os que se detêm na sua contemplação. Quantos perdem suas posses e junto com elas também se perdem! Simplesmente por deixarem de ganhar! A perda talvez seja a ameaça mais angustiante enfrentada pelo ser humano. (Schettini (2000), p.33).

 “A morte como perda nos fala em primeiro lugar de um vínculo que se rompe de forma irreversível, sobretudo quando ocorre perda real e concreta. Nessa representação de morte estão envolvidas duas pessoas: uma que é 'perdida' e a outra que lamenta esta falta, um pedaço de si que se foi. O outro é uma parte internalizada nas memórias e nas lembranças, na situação do luto elaborado. A morte como perda evoca sentimentos fortes, pode ser chamada de 'morte sentimento' e é vivida por todos nós. É impossível encontrar um ser humano que nunca tenha vivido uma perda. Ela é vivenciada conscientemente, por isso muitas vezes, mais temida do que a própria morte. Como esta última não pode ser vivida concretamente, a única morte experienciada é a perda, quer concreta, quer simbólica. (Kovács (1992) p.150).

 
Mas a perda nem sempre é negativa: “Ganha-se não apenas quando se ganha, mas se ganha também quando se perde. A questão é que, infelizmente, aprendemos a interpretar a perda sempre como um prejuízo. Quantas perdas são alívio e descortinamento para visões mais amplas e profundas da vida” (Schettini (2000)p. 24).

 

REFERÊNCIAS

 CARIDADE, A. Sexualidade: corpo e metáfora. São Paulo: Iglu, 1997.
CARUSO, I. A. A separação dos amantes: uma fenomenologia da morte. São Paulo:
Cortez, 1989.
KOVÁCS, M. J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do psicólogo,
1992.
SCETTINI , L. F. Amor Perdido de Amor. Recife: Bagaço, 2000.
ZINKER, J. C. A busca da elegância em psicoterapia: uma abordagem gestáltica
com casais, famílias e sistemas íntimos. São Paulo: Summus, 2001.

Palavras Chaves: Psicanálise Análise Terapia Solidão Separação Divórcio

Terapia, Psicoterapia, Setting, Psicanálise

Livro: Conversa sobre terapia.
Autor: Bilê Tatit Sapienza


 
O PROCESSO PSICOTERÁPICO

"Seu paciente vem semana após semana, às vezes durante anos. Cada vez ele traz um pedacinho da história que é a dele, que é ele. Os sentimentos mais diversos vão passando por ali: raivas e amores, sonhos e desilusões, esperanças e temores, culpas e vontade de poder ser melhor. Por que ele volta toda semana e continua o desenrolar de sua história? Será que é para ter uma conversa interessante com você? Isso não sustentaria uma terapia. Ele vem porque, a cada sessão, vocês dois reúnem pedaços de significados que estavam dispersos na vida dele. Às vezes, eles estão difíceis de aparecer, mas vocês acendem uma luzinha aqui, outra ali, e começam a encontrá-los. Esses significados juntam-se e passam a estruturar sentidos de sua vida."

 
O SETTING

"É o lugar onde o sujeito pode retomar tanto aquele episódio, tão antigo que ele pensou que já fosse passado, como aquele sonho de futuro sempre adiado; onde ele pode ser frágil e ser forte, estar triste ou contente; onde ele pode se ver como aquele para quem a vida tem de ser sempre uma tarefa árdua ou aquele para quem a vida tem de ser sempre uma festa. Enfim, todos os sentimentos têm o direito de frequentar a sessão. Alguns deles surgem e dizem logo 'estou aqui' com muita clareza, e outros, por muito tempo, negam-se a mostrar-se; querem ser chamados por outros nomes ou se misturam com outros sentimentos. Mas, com paciência, eles todos vão chegando e colorindo uma história cheia de sentido."”

 
O QUE É TERAPIA?

"Terapia é um momento em que é possível aprofundar o pensamento, de uma maneira inteiramente pessoal, na questão básica do sentido da vida própria.”
 
"Terapia é oportunidade de o paciente poder olhar, de novo, para o que foi vivido e passou - ou não passou -, para o que é vivido agora, e autenticar tudo como sendo dele, como sendo ele."

"Terapia é possibilidade de dirigir um olhar diferente para a própria existência e, assim, reformular significados."
 
"Terapia é a ocasião de ver que essa e a vida que se realizou, que foi esse o caminho percorrido mas é um caminho que continua e, o mais importante, pode ir em direções diferentes. Às vezes, isso quer dizer novas escolhas que implicam mudanças radicais. Mas o mais comum é que esse poder ir em outra direção queira dizer: mudar a direção do olhar, poder ver outros significados nos fatos que, em si continuam os mesmos; poder sentir que, exatamente porque aquela história é especialmente a dele, ele é seu protagonista e cabe a ele trazer elementos novos para ela. Sim, porque terapia também é isto: a chance de alguém perceber que não lhe compete mudar os outros; que não compete aos outros tomar a iniciativa para resolver os problemas que são dele, e que a obrigação de cuidar da sua vida e primeiramente dele; e a chance de perceber que ele deve isso a si mesmo."

 
"Terapia vem da palavra grega therapeia-as, de therapeúein, e tem os significados de: servir, honrar, assistir, cuidar, tratar. O cuidado com alguma coisa, por exemplo, uma planta, supõe que ela deva ser plantada no solo adequado, tenha a luminosidade de que precisa, receba água, etc. Supõe também precisar interferir, ás vezes, naquilo que esta prejudicando o seu desenvolvimento: a terra que se tona pobre, as pragas que atacam o tronco que se entorta. Essa interferência significa cuidado, e podemos dizer que tal cuidado é terapêutico para a planta.
Mas cuidamos a fim de que? Cuidamos dela para que se torne o melhor possível, a planta que está destinada a ser: para que ela dê as peras mais gostosas ou as margaridas mais bonitas. Num exemplo mais delimitado: alguém pode ter sua mão impedida de desempenhar suas funções mais essenciais por causa de doenças, de traumatismos. Um cuidado terapêutico tentará fazer com que aquela mão se reaproxime de novo daquilo que ela, na condição de mão, deve ser. Trata-se de devolver a ela, o melhor que pudermos aquilo que é próprio da mão ou, dito de outro modo, trata-se de devolver a mão ao que ela é destinada."
 
 
O MOMENTO DA TERAPIA
 
 "O momento da terapia é aquele privilegiado, em que fazemos uma fenomenologia da existência (...) momento raro como só esse pode ser, pois em nenhum outro uma pessoa abre a sua intimidade com tanta confiança.  E ela o faz não para que alguém a veja dentro de uma teoria ou para que elabore urna a partir do que ela fala. Sua existência se abre para ser compreendida. Esse é o fenômeno ali. Ele é absolutamente singular: porque aquela vida de que se trata e única, aquela sessão e única, a relação entre aquele terapeuta e aquele paciente é única. Não há duas terapias iguais.”

 

O TEMPO DA TERAPIA

  "O paciente tem pressa: primeiro, porque ele esta sofrendo; segundo, porque acredita que, se um tratamento é bom, deve ser rápido. Afinal, já ha tantas pesquisas a respeito dos distúrbios, existem técnicas para tratá-los, e você certamente já as conhece. Em geral, ele já vem tomando um remédio, mas lhe disseram que uma terapia também ajuda a resolver.

Você e ele vão trabalhar, não contra o tempo, mas a favor do tempo; ele vai precisar de um tempo para poder desdobrar, com você, pormenores de sua vida que, só depois de contados, tocados, mexidos, poderão ajudar a compor a história dentro da qual suas queixas fazem sentido. E muita coisa que vai ser dita poderá parecer, à primeira vista, conversa jogada fora, mas só parece; você vai precisar de um tempo para aprender, com esse paciente, a forma de se aproximar sem ser invasivo; você vai precisar de um tempo para que amadureça uma compreensão; vai ser preciso tolerar sofrimento.

Talvez você diga agora: "Mas isso é tempo demais; e a terapia mesmo, pra valer, quando começa? Quando vai ser a hora de tratar dos problemas pelos quais ele me procurou?". Ora, a terapia já começou lá, no momento em que ele confiou em você como possibilitador do espaço ou da condição em que o mundo dele pode ser aberto, aproximado, olhado de perto; ali na sala ele falou do medo que sentiu tantas vezes ou do medo que nunca se permitiu sentir; do quanto ele tem se imposto tarefas e esforços para ter sucesso, do quanto ele precisa competir; do amor que não recebeu, do amor que não sabe dar; de como se sente capaz de fazer algum estrago em sua vida ou na dos outros, de como ele não quer isso; de como é preciso estar sempre atento para que nada errado aconteça; dos seus sonhos, tanto aqueles que morreram como aquele que teima em continuar. Falou também das coisas boas de sua vida.

 A terapia já começou na hora em que, ao entrar na vida dele, você se tornou para ele aquele "outro" - e como é necessário o outro! - que o espera a cada sessão para recolher, com ele, pedaços da sua história: pedaços que estavam esquecidos, dispersos, diminuídos, aumentados, e que, ao serem recolhidos, formam um desenho que vai  ganhando sentido e que ele pode reconhecer como sua vida. Ela começou porque poder compartilhar com você esse novo olhar já é aquele "toque" terapêutico que pode alterar profundamente a sua forma de existir."

 
DE QUE CUIDA A TERAPIA?

"A terapia é isto: cuidar da existência que sofre. Porque a existência é frágil por natureza. Não só a vida que, como animal, o homem compartilha com os outros animais é frágil, mas, sobretudo, a existência como característica peculiarmente humana é o que há de mais vulnerável. Existência é "ser-no-mundo", e isso é poder ser atingido, ser tocado o tempo todo por tudo: tanto pelo que vem ao encontro do que desejamos e torna a existência mais plena, como por aquilo que e compreendido como destruição de algo que queremos ter preservado ou como ameaça de que isso possa acontecer. Algumas vezes, e a vida mesma, a própria ou a de um outro, que sentimos ameaçada, e então o sentido das coisas fica abalado, e isso dói. Mas isso não acontece só quando a vida está em risco; acontece também naquelas situações em que sabemos que a vida está ilesa, mas o sentido da vida se quebra ou se torna confuso. A existência é sempre um poder ser diante de um "para quê", de um "a fim de que", e quando este se rompe ou está ameaçado a existência sai machucada. Em algum grau e de alguma forma, algo esta doendo quando a pessoa procura a terapia, embora, as vezes, no começo ela nem identifique ainda aquilo como dor. "

 

 

AS DORES INVISÍVEIS

 
"Damos uma topada na pedra e o dedo dói; alguém sente que a garganta dói; a indigestão faz doer o estômago. Os animais também sentem essas dores. Mas onde dói uma decepção? Onde dói o sentir-se perseguido? E o sentir-se culpado? E a falta de amor? E a falta de sentido? Onde dói a incerteza? E, o saber da precariedade de tudo onde dói? "

 
"Uma arvore pode cair despedaçada por um raio ou esmagada por urna grande pedra, e todo mundo vê. Uma outra, a gente quase nem percebe, mas ela vai perdendo o viço e, lá um dia, está seca. Foi prejudicada por parasitas ou por pragas que se instalaram nela. Acontece isso também com algumas plantas que começam a murchar em seus vasos. São atacadas por pulgões, por cochonilhas, que lhes roubam o vigor. Às vezes,  demoramos a perceber o que está acontecendo; e como é difícil, depois, livrar a planta dessas pragas quase invisíveis!"

 

O OUTRO

 
"Ao concebermos o "ser-com" como uma característica básica da existência, dizemos que esse "ser-com" o outro faz parte também da estrutura do "ser-no-mundo". Eu levo o outro comigo, mesmo se não me importo com ele; se sou hostil ao outro; se me afasto do outro numa renúncia necessária em vista de outros ideais; se me afasto do outro porque não gosto de gente; se prejudico o outro; se digo "o outro que se dane". Basta ver que, até para poder articular esses pensamentos, em  todos eles, aí esta sempre o outro. E quando alguém o elimina, mesmo concretamente, matando-o, aí estará sempre o outro que alguém matou."

 

 OS CHISTES

 
“Uma sessão comporta alguma brincadeira, algum comentário leve sobre um assunto qualquer. Com alguns pacientes, essas coisas aparecem em algum momento da sessão, e podem até ajudar na formação de um vínculo facilitador de confiança; podem favorecer a entrada em assuntos mais sérios; mas, mesmo que não consigamos essa entrada, não foi tempo perdido. Provavelmente, naquele dia, o paciente precisava daquela vivência mais descontraída com seu terapeuta. Ela não terá sido inútil, pois, numa conversa aparentemente fútil na terapia, muito do paciente se mostra, e isso, num outro momento, vai ajudar na compreensão que o terapeuta tem dele.”